Há registro de que a primeira versão da história foi feita pelo padre
José de Anchieta, que o denominou com o termo tupi Mbaetatá - coisa de fogo.
A idéia era de uma luz que se movimentava no espaço, daí, "Veio a
imagem da marcha ondulada da serpente ". Foi essa imagem que se consagrou
na imaginação popular Descrevem o Boitatá como uma serpente com olhos que
parecem dois faróis, couro transparente, que cintila nas noites em que
aparece deslizando nas campinas, nas beiras dos rios. Em Santa Catarina, a
figura aparece da seguinte maneira: um touro de "pata como a dos gigantes
e com um enorme olho bem no meio da testa, a brilhar que nem um tição de
fogo". A versão que predominou foi a do Rio Grande do Sul. Nessa região,
narra a lenda que houve um período de noite sem fim nas matas. Além da
escuridão, houve uma enorme enchente causada por chuvas torrenciais.
Assustados, os animais correram para um ponto mais elevado afim de se
protegerem. A boiguaçu, uma cobra que vivia numa gruta escura, acorda com a
inundação e, faminta, decide sair em busca de alimento, com a vantagem de
ser o único bicho acostumado a enxergar na escuridão. Decide comer a parte
que mais lhe apetecia, os olhos dos animais. E de tanto comê-los vai ficando
toda luminosa, cheia de luz de todos esses olhos. O seu corpo transforma-se em
ajuntadas pupilas rutilantes, bola de chamas, clarão vivo, boitatá, cobra de
fogo. Ao mesmo tempo a alimentação fruga! deixa a boiguaçu muito fraca. Ela
morre e reaparece nas matas serpenteando luminosa. Quem encontra esse ser
fantástico nas campinas pode ficar cego, morrer e até enlouquecer. Assim,
para evitar o desastre os homens acreditam que têm que ficar parados, sem
respirar. e de olhos bem fechados. A tentativa de escapulir apresenta riscos
porque o ente pode imaginar fuga de alguém que ateou fogo nas matas. No Rio
Grande do Sul, acredita-se que o "boitatá" é o protetor das inatas
e das campinas. A verdade é que a idéia de uma cobra luminosa, protetora de
campinas e dos campos aparece freqüentemente na literatura, sobretudo nas
narrativas do Rio Grande do Sul.
As histórias acima fazem parte de um vastissimo
conjunto de nossas tradições populares, que desde o século XIX são alvo de
intenso interesse e controvérsias entre antropólogos e estudiosos em geral.
Uma das primeiras questões que aguçam a curiosidade é a de saber sobre a
origem, embora muitas vezes os elementos estejam tão mesclados e se
transformaram de tal forma que fica impossível localizar a fonte original.
Indicar hipotética fonte, o que se faz sacrificando o conjunto da narrativa,
pouco esclarece sobre as adaptações que sofre no tempo e no espaço, quando
migra de uma região para outra e recebe novas influências. De fato, no caso,
tanto o termo Mboitatá como Caapora denunciam a tradição indígena.
Mas as escavações para buscar a origem não dão
conta de alguns aspectos bastante interessantes. Um deles é perceber que
essas, como tantas outras histórias, são narradas cru determinadas
situações: que situações são essas; quem conta para quem? Será que mesmo
na região onde, em princípio, estariam mais arraigadas elas seriam
compartilhadas da mesma maneira por todos os habitantes? Não se deve esquecer
também que essas narrativas impõem, para os que nela acreditam, certas
atitudes e revelam certos sentimentos em relação aos perigos da floresta;
elas também costumam servir de justificativas, como é ocaso de um caçador
mal sucedido, que pode atribuir a má sorte ao fato de ter deparado com o
Caipora.
Em regiões onde prevalece a transmissão oral essas
histórias desempenham um papel bastante importante na socialização. Contar
e ouvir "causos" é uma atividade lúdica, para passar o tempo livre.
Na recreação, os indivíduos vão incorporando os valores do grupo em que
vivem, e assim aprendem como proceder quando saem, por exemplo, para caçar.
Na história do Caipora é inculcada a idéia de que se deve estabelecer
limites no abate as presas, e que em dias santos ou sextas-feiras deve-se
evitar a floresta. Outras histórias como a da Cuca, nosso papão do universo
infantil, ensina que as crianças devem ir cedo para a cama sem fazer
traquinagens antes de dormir. Mas o papel da história contada num grupo de
seringueiros ou num grupo de pescadores, sobretudo quando não tem muito
contato com a vida na cidade, é distinto do papel dessas mesmas histórias na
vida de crianças de classe média que ouviam as histórias de sua babá ou de
adultos letrados que as ouvem das fontes nativas, dos pais, das instituições
de ensino e da indústria cultural e participariam assim simultaneamente da
cultura do povo e da cultura erudita. Mas, mesmo numa mesma região,
épossível encontrar ausência de consenso quanto à crença em seres
fabulosos. Foi o que ocorreu com o antropólogo Eduardo Galvão, quando esteve,
em 1948, numa região do baixo Amazonas. Ao recolher relatos sobre seres
sobrenaturais, encontrou tanto depoimentos crédulos, sobretudo de
seringueiros e de pescadores, que faziam descrições detalhadas de seus
encontros com seres sobrenaturais, quanto opiniões céticas de moradores que
se referiam à crença no Curupira como "abusão de gente mais velha".
Ou comentavam: "são apenas lendas". Obteve um relato de um
habitante que dizia acreditar no Curupira, embora jamais tivesse tido uma
experiência de ordem pessoal com o ente, pois narrava as histórias que lhe
foram contadas pelo avô.
Fatos como o descrito acima por Galvão, em Santos e
Visagens, indicam que as mesmas histórias são partilhadas pelo povo
brasileiro de maneira diferente, numa mesma época ou em épocas e gerações
diferentes. Entretanto, pode-se lembrar que essas tradições populares são
muitas vezes reivindicadas como um meio de revelar todos os brasileiros ou de
identificar o modo de ser, pensar e agir de uma região do país. Seguindo uma
tradição que, de acordo com Peter Burke, tem início no final do século
XVIII na Europa. Afonso Arinos. em Lendas e Tradições Brasileiras, vê na
descoberta da cultura popular a existência de "um opulento tesouro
esquecido". E acrescenta: "Explorai-o, colhei a mancheias, que
tocareis na fonte verdadeira da vida de nossa raça e ela repetirá convosco o
milagre de Fausto". Embora se possa relativizar o tom ufanístico
excessivo do escritor mineiro, não resta dúvida de que vários escritores
brasileiros da modernidade, como é o caso de Mário de Andrade (Macunaíma),
Raul Bopp (Cobra Norato) e Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas), para
mencionar alguns dos mais importantes, estiveram sempre muito atentos às
tradições populares brasileiras, o que revela que essas tradições migram e
são incorporadas pela cultura erudita.