No imaginário popular em diferentes regiões do País, a figura do Caipora
está intimamente associada àvida da floresta. Ele é o guardião da vida
animal. Apronta toda sorte de ciladas para o caçador, sobretudo aquele que
abate animais além de suas necessidades. Afugenta as presas, espanca os cães
farejadores, e desorienta o caçador simulando os ruídos dos animais da mata.
Assobia, estala os galhos e assim dá falsas pistas fazendo com que ele se
perca no meio do mato. Mas, de acordo com a crença popular. é sobretudo nas
sextas-feiras, nos domingos e dias santos, quando não se deve sair para a
caça, que a sua atividade se intensifica. Mas há um meio de driblá-lo. O
Caipora aprecia o fumo. Assim, reza o costume que, antes de sair numa noite de
quinta-feira para caçar no mato, deve-se deixar fumo de corda no tronco de
uma árvore e dizer: "Toma, Caipora, deixa eu ir embora". A boa
sorte de um caçador é atribuída também aos presentes que ele oferece.
Assim, por sua vez, os homens encontram um meio de conseguir seduzir esse ente
fantástico. Mas fracasso na empreitada é atribuído aos ardis da entidade.
No sertão do Nordeste, também é comum dizer que alguém está com o Caipora
quando atravessa uma fase de empreendimentos mal sucedidos, e de infelicidade.
Há muitas maneiras de descrever afigura que amedronta os homens e que,
parece, coloca freios em seus apetites descontrolados pelos animais. Pode ser
um pequeno caboclo, com um olho no meio da testa, cocho e que atravessa a mata
montado num porco selvagem; um índio de baixa estatura, ágil; um homem.
peludo, com vasta cabeleira.
As histórias acima fazem parte de um vastissimo
conjunto de nossas tradições populares, que desde o século XIX são alvo de
intenso interesse e controvérsias entre antropólogos e estudiosos em geral.
Uma das primeiras questões que aguçam a curiosidade é a de saber sobre a
origem, embora muitas vezes os elementos estejam tão mesclados e se
transformaram de tal forma que fica impossível localizar a fonte original.
Indicar hipotética fonte, o que se faz sacrificando o conjunto da narrativa,
pouco esclarece sobre as adaptações que sofre no tempo e no espaço, quando
migra de uma região para outra e recebe novas influências. De fato, no caso,
tanto o termo Mboitatá como Caapora denunciam a tradição indígena.
Mas as escavações para buscar a origem não dão
conta de alguns aspectos bastante interessantes. Um deles é perceber que
essas, como tantas outras histórias, são narradas cru determinadas
situações: que situações são essas; quem conta para quem? Será que mesmo
na região onde, em princípio, estariam mais arraigadas elas seriam
compartilhadas da mesma maneira por todos os habitantes? Não se deve esquecer
também que essas narrativas impõem, para os que nela acreditam, certas
atitudes e revelam certos sentimentos em relação aos perigos da floresta;
elas também costumam servir de justificativas, como é ocaso de um caçador
mal sucedido, que pode atribuir a má sorte ao fato de ter deparado com o
Caipora.
Em regiões onde prevalece a transmissão oral essas
histórias desempenham um papel bastante importante na socialização. Contar
e ouvir "causos" é uma atividade lúdica, para passar o tempo livre.
Na recreação, os indivíduos vão incorporando os valores do grupo em que
vivem, e assim aprendem como proceder quando saem, por exemplo, para caçar.
Na história do Caipora é inculcada a idéia de que se deve estabelecer
limites no abate as presas, e que em dias santos ou sextas-feiras deve-se
evitar a floresta. Outras histórias como a da Cuca, nosso papão do universo
infantil, ensina que as crianças devem ir cedo para a cama sem fazer
traquinagens antes de dormir. Mas o papel da história contada num grupo de
seringueiros ou num grupo de pescadores, sobretudo quando não tem muito
contato com a vida na cidade, é distinto do papel dessas mesmas histórias na
vida de crianças de classe média que ouviam as histórias de sua babá ou de
adultos letrados que as ouvem das fontes nativas, dos pais, das instituições
de ensino e da indústria cultural e participariam assim simultaneamente da
cultura do povo e da cultura erudita. Mas, mesmo numa mesma região,
épossível encontrar ausência de consenso quanto à crença em seres
fabulosos. Foi o que ocorreu com o antropólogo Eduardo Galvão, quando esteve,
em 1948, numa região do baixo Amazonas. Ao recolher relatos sobre seres
sobrenaturais, encontrou tanto depoimentos crédulos, sobretudo de
seringueiros e de pescadores, que faziam descrições detalhadas de seus
encontros com seres sobrenaturais, quanto opiniões céticas de moradores que
se referiam à crença no Curupira como "abusão de gente mais velha".
Ou comentavam: "são apenas lendas". Obteve um relato de um
habitante que dizia acreditar no Curupira, embora jamais tivesse tido uma
experiência de ordem pessoal com o ente, pois narrava as histórias que lhe
foram contadas pelo avô.
Fatos como o descrito acima por Galvão, em Santos e
Visagens, indicam que as mesmas histórias são partilhadas pelo povo
brasileiro de maneira diferente, numa mesma época ou em épocas e gerações
diferentes. Entretanto, pode-se lembrar que essas tradições populares são
muitas vezes reivindicadas como um meio de revelar todos os brasileiros ou de
identificar o modo de ser, pensar e agir de uma região do país. Seguindo uma
tradição que, de acordo com Peter Burke, tem início no final do século
XVIII na Europa. Afonso Arinos. em Lendas e Tradições Brasileiras, vê na
descoberta da cultura popular a existência de "um opulento tesouro
esquecido". E acrescenta: "Explorai-o, colhei a mancheias, que
tocareis na fonte verdadeira da vida de nossa raça e ela repetirá convosco o
milagre de Fausto". Embora se possa relativizar o tom ufanístico
excessivo do escritor mineiro, não resta dúvida de que vários escritores
brasileiros da modernidade, como é o caso de Mário de Andrade (Macunaíma),
Raul Bopp (Cobra Norato) e Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas), para
mencionar alguns dos mais importantes, estiveram sempre muito atentos às
tradições populares brasileiras, o que revela que essas tradições migram e
são incorporadas pela cultura erudita.